quarta-feira, 2 de julho de 2014

A ascensão do ISIL e a atual crise do Oriente Médio

O presente cenário no Oriente Médio tem gerado confusão entre muitos ocidentais. É um número tão grande de facções, divisões e seitas que a imagem fica ainda mais turva. Aproveitando que algumas pessoas pediram esclarecimentos, vou tentar ajudar no entendimento da situação atual, que atingiu o seu ápice com a proclamação do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL)*

O ISIL tem um duplo contexto. Surge primeiramente da união de forças fundamentalistas no Iraque, que combatiam o governo estabelecido em Bagdá, os curdos ao norte e os xiitas ao sul.  Com o início da guerra civil na Síria, as células radicais se uniram ao ISIL, ampliando a influência e o poderia do grupo. Contudo, antes mesmo de falar do terrorismo moderno, é necessário retroceder alguns séculos, até a península arábica do séc. XVIII. Grande parte do território da península estava livre da influência otomana. Os turcos dominavam a parte oeste, sendo os senhores das cidades sagradas de Mecca e Medina. Nesse contexto surge Muhammad bin Abd al Wahhab (1703–1792) . Com vocação de reformador, sunita da escola hambali de jurisprudência  (o sunismo tem quatro grandes escolas de jurisprudência (madhhab), que seriam como modos distintos de aplicações da lei islâmica) ele defendia que o islamismo havia sido corrompido pelos otomanos.  Ainda com forte oposição do clero sunita, al Wahhab conseguiu angariar aliados, em especial o apoio de Muhammad ibn Saud. Dessa união surge, portanto, a moderna Arábia Saudita.

O wahabismo, como viria a ser chamado, também autoproclamado salafismo - salaf é o nome dado à primeira geração de sahaba, os companheiros de Muhammad, os que viveram o islamismo mais puro – tornou-se numa máquina de “takfir”, ato de julgamento da credulidade alheia, mediante a afirmação de que um muçulmano é “kafir”, infiel. Além disso, com uma leitura completamente anacrônica do Corão e da Tradição (Sunnah) iniciou uma sistemática destruição da identidade islâmica, seja com a implosão de mesquitas milenares, como através do combate à filosofia e defesa da despersonalização da mulher etc. O wahabismo se desenvolve e é exportado para diversos outros países, graças aos petrodólares sauditas. Surgem, portanto, os diversos grupos terroristas, como a Al-Qaeda.

O ISIL é um filho legítimo desse radicalismo islâmico. Contudo, o seu grande diferencial é conseguir congregar diversos grupos wahabitas ressentidos, muitos “combatentes” cansados com a energia gasta contra o inimigo ocidental enquanto os seus países eram governados por "incrédulos". É em tal contexto que se inicia a almejada reconstituição do califado. Vale destacar que o título de Califa - Khalifah (Não sei a razão da língua portuguesa ter sonorizado o "C" em palavras árabes/persas "Kh", já que estas soam como "R". Em espanhol é mantido o som original; "Jomeini", "Jalifa" etc) tem uma conotação espiritual-política: Khalifat Rasul Allah, o representante do Mensageiro de Deus (aqui entra uma eterna polêmica com os xiitas, já que para eles os verdadeiros Califas/Imames seriam os membros da Ahl al-Bayt, a família do profeta). Contudo, desde o fim do Califado Rashidun, isto é, dos 4 companheiros de Muhammad, o título de "Califa" foi perdendo sua conotação espiritual e se politizando de modo sistemático. Os omíadas são os verdadeiros fundadores do Império Islâmico propriamente dito, dando um status e uma pompa que não havia antes, e tornando "Califa" em sinônimo de "Rei". Vale destacar que, curiosamente, o fundador dessa dinastia, Muawiyah I, era filho de Abu Sufyan, o maior perseguidor de Maomé e que só se converteu ao islã, juntamente com a sua prole, depois que Mecca foi tomada pelos muçulmanos. 

Com o fim do Califado Abássida, o título praticamente se perde. Os muçulmanos agora se encontram fragmentados em diversos reinos e ninguém proclama ter a autoridade central. Contudo, a busca pela unidade da Ummah  - comunidade islâmica – sempre foi um ponto fundamental dos ensinamentos de Muhammad. De acordo com Sahih Muslim, num hadith – dito do Profeta do Islam - por ele compilado, Maomé teria dito:

“Os muçulmanos estão proibidos de ter dois emires, já que isso faria com tivessem diferenças em seus assuntos e conceitos. A sua unidade seria quebrada e disputas iriam eclodir entre eles. A Sunnah, então, seria abandonada, a bida'a (heresia) se espalharia e a fitna (tentação) iria crescer, o que é do interesse de ninguém”.

Assim, quando o ISIL proclama o Califado com a pureza do período Rashidun está apenas tentado reconstituir o projeto unitário islâmico, agora degenerado dentro do anacronismo fundamentalista dos radicais. O pretenso Califa, Abu Bakr al-Baghdadi, também se diz descendente de Muhammad, já que ser membro da tribo coraixita é pressuposto essencial para a detenção deste título.  Entretanto, ao mesmo tempo em que o ISIL enfrenta os seus inimigos externos – ocidentais em geral e incrédulos em geral (especialmente cristãos e xiitas) – sofre com a dissolução da coesão entre os wahabbitas. A Al-Qaeda, primeiramente aliada, já retirou o seu apoio ao ISIL. Este, contudo, é o maior combatente no Iraque atual e estende sua influência até os limites da Jordânia, também participando ativamente na guerra civil síria para a deposição do regime de Bashar al-Assad.

Dentro da tal cenário, quais forças seriam capazes de barrar o avanço do ISIL? O Irã é o ator decisivo no cenário atual. As "fronteiras" do “califado” começam nos territórios xiitas do Iraque, onde os seus adeptos também pegaram em armas para a defesa dos seus lugares sagrados e de sua gente, e que encontram em Muqtada al-Sadr e no Ayatollah Ali al-Sistani os seus grandes nomes. Este último, inclusive, um crítico dos xiitas radicais que se opõem ao governo estabelecido. No Líbano, no outro extremo, os xiitas - aliados tradicionais dos cristãos no país, principalmente junto ao Hezbollah - também atrapalhariam o aumento da influência para além da Síria. O perigo do "califado" atingir a pacífica Jordânia e o multireligioso Líbano é iminente, o que complicaria, e muito, um cenário que já é caótico. A inteligência persa pode congregar essas diversas frentes xiitas, unidas aos cristãos, criando um forte grupo de resistência. É importante lembrar que o Irã é o estado islâmico onde os cristãos tradicionais - católicos, assírios, armênios - têm maior liberdade religiosa. Ademais, a sua abertura ao Ocidente, somada ao reconhecimento do seu papel estratégico na região, até mesmo como espectador distante da situação presente, o faz uma personagem decisiva no cenário estabelecido. 

*Alguns chamam de “Estado Islâmico do Iraque e da Síria” (ISIS), mas o termo “Levante” é mais fiel à versão original (al-Sham), englobando os territórios atuais da Síria, da Jordânia, da Palestina/Israel, do Líbano e partes da Turquia. 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

O estranho caso do exorcismo português, por Gilberto Freyre


Retirado do livro "Aventura e Rotina", de Gilberto Freyre
O abade velho dos arredores de Braga é a história principal que nos conta no seu modo simples e bom de ser da sua Igreja e do seu país (um modo que teria encantado Bernanos): a história de um exorcismo que teve de praticar numa criatura de Deus disputada pela demônio. Começa a conversa sobre o assunto com uma pergunta que lhe faço sobre assombrações: nunca aparecera fantasma naquela igreja antiga? O abade nos diz então, todo sinceridade e simplicidade, que fantasma nunca vira nem ali nem em parte alguma. Mas, em certa casa que habitara, ouvira ruídos que depois apurou serem infernais; e provocados por uma certa rapariga em cujo corpo metera-se violento e terrível demônio. Tão terrível que resistira a todo o severo latim do ritual católico de exorcismo. Zombava pela boca da rapariga das palavras sagradas como se zombasse do próprio Deus. Repetia o latim do ritual como se gracejasse com os doutores da Igreja.
Pelo que o bom abade, então ainda moço, decidira enfrentar o inimigo de Deus e da Igreja não apenas como padre católico: também como português. Lutando com ele de corpo a corpo se fosse preciso. E falando-lhe não em latim de seminário mas em português de plebe: rude, grosseiro, tremendo.
Suara o abade em seu combate com o demônio. Gastara contra o inimigo todo o português obsceno que sabia: cobrira-o de palavrões. Até que, sentido o demônio fraquejar, tivera de resolver de repente o problema: para onde ordenar em nome de Deus que fosse o nauseabundo diabo? Para que alma? Viera-lhe então à lembrança certa fotografia que vira das festas do Centenário da Independência do Brasil, no Rio de Janeiro; e dessa fotografia a figura de uma negra culatrona, a arrebentar-se nos requebros de um obsceno maxixe. Era a solução. Espécie de solução do mandarim de Eça, mas solução. E para a pobre da negra carioca é que o bom do abade português mandara, talvez  freudianamente, que o demônio, vencido por seus palavrões, voasse naquele mesmo instante: “que se metesse no cu daquela negra!”, ordenara com voz já cansada mas ainda tão forte de ministro de Deus que o diabo instantaneamente obedecera, deixando em paz a rapariguinha. Nunca mais lhe voltara ao corpo. Os ruídos estranhos na casa também desapareceram. O exorcismo fora completa vitória, não dele, simples padre de aldeia, mas de Deus Nosso Senhor sobre o demônio, que fora se meter no corpo da negra carioca. Os sacerdotes brasileiros saberiam cumprir o seu dever, expulsando o tinhoso para outras terras.

terça-feira, 3 de junho de 2014

A carta de um Santo Mártir


Carta escrita por São Mathias Mulumba ao Pe. Leon Livinhac M.Afr. (futuramente Bispo e Superior Geral dos Missionários da África). Kalemba, como também era conhecido, era o mais velho dos Mártires de Uganda, com cerca de 50 anos. Ele foi batizado no dia 28 de maio de 1882, pelo Pe. Girault M.Afr. O seu martírio foi o mais cruel e longo de todos, com três dias de torturas incessantes. Seus membros foram cortados de seu corpo, tiras de carne foram arrancadas de suas costas e deixado para morrer em Old Kampala.

Meu pai sempre acreditou que os Bagandas não tinham a verdade, então a procurava em seu coração. Ele mencionou tudo isso para mim, e antes de sua morte disse-me que algum dia homens viriam ensinar-nos o caminho correto.
Essas palavras causaram uma profunda impressão em mim e, quando a chegada de alguns estrangeiros foi anunciada, eu os observei e tentei entrar em contato com eles, dizendo a mim mesmo que ali estivessem, talvez, os homens anunciados pelo meu pai. Destarte, associei-me aos árabes, os primeiros que chegaram no reino de Suna. A sua crença pareceu-me superior às nossas superstições. Fui instruído e, juntamente com um número de bagandas, abracei o islamismo. Mutesa, querendo agradar o Sultão de Zanzibar, cujo poder e riqueza dava uma exagerada importância, também declarou que queria se tornar muçulmano. Ordens foram dadas para a construção de mesquitas em todo o país. Por um curto período, parecia que toda a nação iria aderir à religião do falso profeta, mas mudando sua idéia repentinamente, Mutesa deu ordens para exterminar todos os que tinham se tornado muçulmanos. Um bom número pereceu no massacre, duzentos ou trezentos organizaram-se para fugir e, com as caravanas árabes, foram para a ilha de Zanzibar. Eu consegui escapar, juntamente com alguns outros, ocultando o fato da minha conversão e continuando a passar-me por amigo dos nossos deuses, ainda que em segredo eu continuasse fiel às práticas do islamismo.
Assim estavam as coisas até a chegada dos protestantes. Mutesa os recebeu muito bem: ele lia o livro que trouxeram na audiência pública e parecia inclinado para essa religião, que declarou ser muito superior àquela dos árabes. Eu perguntei a mim mesmo se não tinha cometido um erro, se talvez os recém-chegados não eram os verdadeiros mensageiros de Deus. Fui visitá-los frequentemente e participava de suas instruções. Pareceu-me que os seus ensinamentos eram uma melhoria daquilo que me foi ensinado anteriormente. Destarte, abandonei o islamismo, porém sem pedir o batismo.
Muitos meses se passaram até a chegada de Mapèra (Pe. Lourdel M.Afr). Meu instrutor, Mackay, teve o cuidado de dizer-me que aquele homem branco que acabava de chegar não conhecia a verdade. Ele chamava a sua religião de “idolatria da mulher”; eles adoram, dizia, a Virgem Maria. Ele também me advertiu para evitá-los com muita precaução. Eu, assim, coloquei-me longe de vocês e, provavelmente, nunca teria colocado os meus pés em sua moradia se o meu chefe não tivesse ordenado  que supervisionasse a construção de uma das suas casas. Mas Deus mostrou o seu amor por mim.
A primeira vez em que vi vocês de perto fiquei muito impressionado. Ademais, continuava a observar as suas orações e o trato com o povo. Destarte, vendo a sua bondade, eu disse a mim mesmo, ‘Como pessoas que parecem ser tão boas podem ser mensageiras do Mal?”
Eu conversei com aqueles que estavam sendo instruídos em suas casas e os questionei a respeito da doutrina que professavam.  O que eles me disseram foi justamente o contrário daquilo que Mackay havia assegurado a mim. Assim, eu me senti fortemente impulsionado a participar de suas instruções catequéticas. Deus concedeu-me a graça da entender que vocês ensinavam a verdade e que eram realmente os homens de Deus que meu pai havia falado. Desde então, eu nunca tive uma mínima dúvida a respeito da verdade da sua religião e me sinto completamente feliz.
Retirado e traduzido do livro "African Holocaust: The Story of the Uganda Martyrs", de J. F. Faupel

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A metafísica de Mulla Sadra

Mulla Sadra (1572 – 1640) foi um dos maiores nomes da filosofia islâmica e da grande tradição persa. O seu trabalha integra o Renascimento Iraniano, como foi chamado o período no séc. XVII de forte florescimento cultural. Para alguns, Mulla Sadra pode ser considerado o maior pensador islâmico dos últimos séculos A filosofia que desenvolveu, numa síntese entre Avicena, Suhrawardi, Ibn Arabi, Aristóteles e os 12 Imames do islamismo xiita, inaugurou o existencialismo ontológico no espectro do pensamento muçulmano.

Para Mulla Sadra, o filósofo é a testemunha do real, restaurando para Deus a fonte da Sua presença na realidade, vivendo uma autêntica “shahada”. Isto só é possível porque Deus testifica a Si mesmo em todas as suas manifestações, o existente enquanto processão da Sua Luz e do Seu infinito ato de ser. A metafísica, portanto, tem um papel libertador, em imitação à liberdade divina. Esta liberdade é inscrita na natureza mesma da inteligência do homem, diretamente vinculada com Deus, expressando a criativa espontaneidade do imperativo divino: inteligir é libertar-se de todos os grilhões mortais, livrando-se da opressão da matéria e das paixões.

A sabedoria (“hikmah”) é revelação, ou seja, o desvelar da realidade das coisas através do exercício da inteligência. Também é revelação no sentido em que Deus mesmo, em Seu Ser, manifesta-Se na sabedoria humana, tornando possível as epifanias, na contemplação da realidade, da beleza dos Seus mais belos nomes. Ademais, aqui entra um outro aspecto fundamental do pensamento de Mulla Sadra: a sabedoria é revelação já que abre ao homem o caminho do autoconhecimento, que o desperta do esquecimento e o permite realizar a sua vocação essencial, a contemplação. Se a sabedoria, portanto, é transfiguração do sujeito através da atualização das suas maiores potencialidades, então, como afirma Christian Jambet, a sabedoria é o tornar angélico dos homens.

“Aquele que conhece a si mesmo, conheceu ao Seu Senhor”, disse o Profeta Muhammad. Avicena, baseado nesse hadith, dirá que o desvelar do eu é a experiência da existência, justificando a noção de que o conhecimento de si reflete o conhecimento do Ser. Para Sadra, esse conhecimento é uma espécie de exegese do eu que conduz a uma maior proximidade com Deus, através da descoberta da própria natureza espiritual: uma “palavra luminosa” – kalimah nuriyah - , uma “essência espiritual” – dhat ruhaniyah –, uma “chama do Malakut” – shu’lah malakutiyah. A alma é “palavra” na qual a Divina Palavra se expressa, e nessa sua essência espiritual, na concepção de Mulla Sadra, encontra a sua natureza angélica. Destarte, a vocação da metafísica é iluminar a alma para que caminhe no progresso da perfeição, reconciliando-se com a sua verdadeira natureza e verdadeiro fim. Contudo, essa “iluminação” não é irracional, um simples fluxo do mistério, mas, isto sim, é a síntese da atitude mística com o conhecimento inteligível.

"Ele foi Quem estabeleceu as duas massas de água; uma é doce e saborosa, e a outra é salgada e amarga, e estabeleceu entre ambas uma linha divisória e uma barreira intransponível” (Corão 25: 53). De acordo com a leitura dada pela mística islâmica, esse trecho se refere à dualidade entre a vida terrena e a vida celeste. Para Sadra, ainda na mesma linha, o intelecto material é o limite que separa a água “amarga”, a natureza material, da água saborosa, o outro mundo. Nos dizeres de Christian Jambet “o homem é microcosmo que recapitula o macrocosmo”, sendo a “barreira” a sua inteligência material. A metafísica é portanto a descoberta de uma ordem – a ordem da criação. Esta ordem inteligível é atualizada na mente humana, pela qual se assemelha ao Criador. Deste modo, além de ser uma reflexão sobre a ordem, a metafísica, no pensamento de Mulla Sadra, é o caminho para a imitação – tashabbuh - de Deus, o que de certa forma lembra o caminho da mística em Edith Stein. 

A metafísica de Mulla Sadra está totalmente centrada no existente enquanto tal, fiel à herança de Aristóteles e Avicena. Para o pensador iraniano, o conhecimento do existente é a cognição da sua realidade (haqiqah), do seu ato de ser (wujud). Com o termo “al-haqiqah”, Sadra se refere à realidade do existente, já que o existente existe na realidade e pela realidade. De certo modo, essa sua concepção se assemelha à idéia de essência da coisa. Contudo, no pensamento de Mulla Sadra, a realidade essencial deriva da divina essência, que é o real por excelência, a constituição e o constitutivo de todo o existente. Destarte, conhecer a essência significa conhecer o seu fundamento em Deus, na qual a coisa encontra a sua realidade. Nesse ponto é interessante perceber a semelhança com o “realismo radical” de Xavier Zubiri: Deus como a realitas fundamentalis da realidade das coisas reais.

Assim, o ponto de partida da ontologia é o conhecimento do existente e o seu destino e fundamento em Deus, que já é o sujeito da teologia. O pensamento de Mulla Sadra, portanto, sintetiza, em grande medida, a herança metafísica da tradição islâmica, somada a outras influências, em especial à reflexão espiritual dos 12 imames do xiismo e ao rico conteúdo místico que deles provêm. Mulla Sadra desenvolve essa ontologia centrada na “luz do ser” e na gradual perfeição do homem através da sabedoria, num processo “revolucionário” de ensimesmamento que conduz ao centro, ao Ser mais íntimo que o próprio ser do homem. 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Unidade na diversidade

Quase sempre nos círculos católicos ouvimos falar da “unidade na diversidade”. Essa idéia é boa em si mesma. Expressa a catolicidade da Igreja, a multiplicidade de carismas e espiritualidades. Contudo, quase sempre esta frase é acompanhada de um outro pressuposto. “Unidade na diversidade” se converte num modo prático de endossar o relativismo doutrinal, transformando o essencial, isto é, a fé católica naquilo que é mais constitutiva, em aspectos acidentais, passiveis de discordância. Nesse cenário, a “unidade” nada mais é do que um sentimento rarefeito, sem coesão objetiva, portanto incapaz de gerar união. 

Não é do meu interesse fazer reflexões teológicas. A primeira crítica que deve ser dirigida a esse posicionamento é de cunho puramente lógico. O que faz de alguém católico? O que permite que um homem, do ponto de vista prático, se identifique como membro da Igreja Católica? Ninguém é coagido a ser católico. Se o é, o é na liberdade. A Igreja, como qualquer “organização” – destaco mais uma vez que estou excluindo toda a questão teológica – necessita de uma estrutura interna. Contudo, mais do que mera burocracia, é fundamental que tenha notas e características que permitam a consolidação de sua identidade. 

O catolicismo, como qualquer outra religião, é constituído por um corpo doutrinal e moral que torna possível a unidade. Nas mais diversas variedades de culturas, a mesma fé se faz presente em sua totalidade. Entretanto, dentro do paradigma relativista, a unidade nada mais é do que um vínculo desprovido de objetividade. O que possibilita que um católico chinês e um católico brasileiro se reconhecem como irmãos de um mesmo credo? Não é a expressão dessa fé, que depende da encarnação nas culturas locais, mas sim é o corpo doutrinal, a base sobre a qual a diversidade se realiza.

Como é possível falar de “unidade na diversidade” se não há nem mesmo concepções convergentes a respeito de Cristo e de Sua Igreja? A diversidade é possível na vida de piedade, nas inculturações da fé, e não nos parâmetros fundantes da experiência religiosa. Não há unidade quando alguém acredita que a Eucaristia é simbólica e outro professa a sua crença na Presença Real. Não há unidade quando alguém acredita que a Igreja é um mal necessário e outro afirma que é o Sacramento Universal da Salvação. Não há unidade quando alguém dissocia o Jesus histórico do Cristo da fé e o outro não. Em nenhum desses casos há nada que possibilite a união. Ao contrário, as divergências entre estas posições estão mais similares aos abismos que separam a Igreja Católica, por exemplo, das centenas de denominações protestantes. 

Em tal cenário, o que é a unidade? Onde está a unidade? Para que esta seja possível é necessária a convergência de fatores essenciais, deixando aos aspectos acidentais a possibilidade da diversidade. Nessa equação entra a liberdade, permitindo que aqueles que, por algum motivo, se incomodam com a crença professada pela Igreja, sintam-se livres para deixá-la. Contudo, o que presenciamos é justamente uma heterogeneidade naquilo que deveria ser basilar e unitário. Sem essa concepção, o catolicismo se torna numa Babilônia doutrinal, incapaz de professar uma mesma fé sem que esta receba recortes e adaptações em cada consciência. De certo modo experimentamos a “protestantização” da fé católica, isto é, a desconstrução da experiência comunitária da fé em prol de parâmetros individuais que alçados à dignidade de dogmas simplesmente acabam com o caráter universal da crença que professamos.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Gilberto Freyre, Lisboa e Batinas

Sou dos que sentem em Lisboa a falta de padres magros e frades gordos a descerem pacatamente ladeiras, a saírem docemente de igrejas, a atravessarem hieraticamente praças e não apenas a dizerem burocraticamente missas no interior de igrejas e capelas. Padres e frades fazem falta à Lisboa de hoje: aos conventos secularizados e às ruas aburguesadas

Não é que a sua ausência seja absoluta. Aparecem. Mas tão rara é sua presença que também neste particular a Lisboa de hoje nos dá a impressão de vir sofrendo uma reforma suíça nos seus hábitos e nos modos de ser. Uma reforma suíça que fosse também uma Reforma Protestante; e que viesse diminuindo o número de padres católicos nas ruas, depois de ter fechado os conventos e acabado com os frades e as freiras.

Sem frades a saírem dos conventos e sem padres a atravessarem as ruas, Lisboa nos dá a impressão de incompleta, de deformada, de mutilada. Os raros padres que hoje se vêem na capital portuguesa, outrora tão opulenta deles, são poucos para darem a Lisboa a nota pitorescamente clerical que a sua paisagem pede, que sua tradição católica exige.

É que, dos padres que se avistam hoje em Lisboa, quase todos parecem ser padres apenas pela metade, trajados, como são, à maneira protestante. Os tradicionais hábitos talares substituídos por simples sobrecasacas ou mesmo burguesíssimos casacos. Um ar burocrático, e de modo algum teocrático ou sequer clerical, é o desses padres com aparências de semipadres. Só sé excetuam os “inglesinhos”.

Fazem falta a Lisboa boas e completas figuras de padres e de frades. Padres ortodoxamente vestidos de padres. Frades na sua variedade de hábitos e insígnias. 

Gilberto Freyre em "Aventura e Rotina"

domingo, 16 de fevereiro de 2014

"Caçadores de Obras-Primas": imaginação moral paras as massas

O filme “Caçadores de Obras-Primas” é uma ode à imaginação moral, à tradição, à Civilização Ocidental, à Igreja.  É um filme com claros ensinamentos, mas sem caráter panfletário. Tendo como pano de fundo uma história verídica, a produção pretende instigar nos espectadores o despertar para um mundo – tristemente – desconhecido: a cultura ocidental. Alguns talvez esperassem um filme com grandes cenas de ação. Ficarão decepcionados. A história tem até mesmo um ar “monótono”. Para falar da arte ninguém precisa de explosões e carros em alta velocidade. Uma cena na Igreja de Bruges vale mais do que milhares de tonéis em chamas.

Para alguns, “Caçadores de Obras-Primas” pode parecer apenas mais um filme tendo como temática a II Guerra Mundial. O primeiro grande erro é justamente não entender que a história ali retratada é nossa. Qualquer ocidental minimamente consciente deve se apossar dos sentimentos daqueles homens que heroicamente se ofereceram para a nobre missão. A urgência daquele projeto não atinge apenas críticos de arte, arquitetos e escultores, mas todo homem que foi formado sob a égide das instituições e valores da Civilização.

O filme, nesse ponto, é impecável. Ele está muito consciente da sua proposta “civilizatória”. A arte é apresentada não como um capricho de eruditos europeus, mas como o legado perene da humanidade. A sua universalidade é justamente o que faz dessa experiência espiritual-estética atemporal. O que está em jogo não são os museus. O que está em jogo é a identidade ocidental. Esta se mantém viva tanto nas paredes dos grandes acervos, como nas piedosas e antigas imagens que durante séculos foram alvos das fervorosas orações do povo nas igrejas do interior europeu.

Eu aprendi mais sobre a noção de “imaginação moral” lendo as poesias e as peças de T.S. Eliot do que me debruçando sobre livros teóricos (que também são importantes).  Aprendi com o poeta que um soneto ou uma tela podem conter mais reflexão ontológica do que séculos de debates estéreis. Essa comunhão de almas, o “contrato da sociedade eterna” de Burke ou a “democracia dos mortos” de Chesterton, é o que possibilita a vivacidade de uma Civilização. Não me espantaria se descobrisse hoje que Eliot escreveu alguma breve poesia sobre o sequestro e recuperação da Madonna de Bruges. Ele certamente acompanhou com aflição a perversão cultural nazista.

Alguém pode se perguntar o que a destruição do “Políptico de Ghent”, pitado por Jan van Eyck, mudaria em nossas vidas. Olhando do ponto de vista puramente pragmático, e portanto com um olhar moderno, pouco importa se essa obra está inteira ou em ruínas. A nossa existência não seria atingida em nada pelas chamas que arrasariam a pintura. Contudo, quando nos entendemos como parte dessa comunhão de almas e herdeiros de uma tradição viva pelo espírito e pela carne, contemplar o fim de uma obra de arte é assistir o extermínio daquilo que de mais elevado foi produzido pelo homem. Não pelos homens, mas pelo homem, conceito universal, que abarca a todos: eu, o meu vizinho, Jan van Eyck e a senhora do interior do Piauí. Todos são sócios dessa experiência de totalidade, de eternidade.

O filme retrata justamente esse testamento espiritual que torna cada homem herdeiro daquilo que fez – e faz – de nós homens ocidentais.  Ainda que uma geração inteira seja destruída, ainda será capaz de se levantar. Contudo, se a sua cultura e a sua história são aniquiladas, extingue-se a sua identidade e se incapacita o seu ressurgimento. Esta é a mensagem claramente transmitida em “Caçadores de Obras-Primas”. Ao final do filme, o ancião acompanhado do jovem se encontra diante da Madonna. Valeu a pena tanto esforço, tantos riscos e algumas mortes. Ali, na imagem esculpida pelas mãos delicadas de Michelangelo, eternizava-se o espírito do homem tocado por Deus.