O islã é hoje um dos
assuntos mais recorrentes nos meios de comunicação. Ademais, desde o séc. XIX a
Igreja vem procurado compreender e estudar mais profundamente a história, a
tradição e a teologia islâmicas. Nesse processo de conhecimento se destacam três
homens de coração evangélico e apaixonados por Cristo: Charles Lavigerie
(1825-1892), Charles de Foucauld (1858-1916) e Louis Massignon (1883-1962). O
primeiro foi o missionário, o segundo o asceta e o terceiro o teórico. Os três,
porém, interessados no islamismo como objeto de estudo e, ao mesmo tempo, como
sadia provocação para o incremento da vida espiritual. Os seus exemplos
carismáticos até hoje arrebatam e conquistam muitos fiéis que procuram
testemunhar o Evangelho através de uma vida de abnegação e caridade total.
A relação do
cristianismo com o islamismo foi, durante muito tempo, marcada pelo conflito
intenso. O processo de expansão da fé muçulmana, atingindo áreas já totalmente
cristãs, gerou um primeiro choque de civilizações. Nessa dinâmica, mediante um
lento processo de arabização, os católicos, enquanto dhimmis, ou seja, súditos
não-muçulmanos dentro de um estado governado pela shariah, passaram a
coexistir, ainda que de modo muito controlado, com os seus dominadores. Em
contrapartida, os cristãos, em muitas das fronteiras da cristandade, sofreram
com as ameaças da invasão “maometana”. Se, numa extremidade, os muçulmanos
conseguiram se instalar na península ibérica, dominando-a por séculos, no outro
lado do continente jamais conseguiram ultrapassar os limites tão almejados de
Viena.
Ao longo desses embates
históricos, aos quais não cabe um juízo que não leve em consideração o contexto
próprio, destacam-se o modo como a teologia católica desenvolveu um pensamento
a respeito da fé islâmica. São João Damasceno (675-753) se sobressai nesse
aspecto por ter sido uma testemunha da experiência muçulmana. Ele nasceu e se
criou dentro do território abarcado pelo domínio islâmico. Por volta de 630 a
região da Síria caíra diante do expansionismo da Crescente e se tornara o
grande centro político do califado. Muawiyah
I (602-680) sucedeu a Ali ibn Abu Talib (600-661), genro e primo de Maomé
(570-632) e o último dos Califas Rashidun, fundando, assim, a dinastia omíada.
Este não se sentiu constrangido em manter muitos cristãos em proeminentes
posições em seu governo na Síria. Até mesmo famílias que outrora serviam ao Império
Bizantino galgaram prestígio diante do novo soberano. Ademais, existem indícios
de que o pai de São João Damasceno, Sarjun, servira como conselheiro de
Muawiyah.
Para este Doutor da Igreja o islamismo seria nada mais do que uma
perversão ariana. Maomé, em suas andanças comerciais pela península arábica e
proximidades, teria supostamente encontrado um monge ariano. Através daquilo
que colhera dessa doutrina herética formara a sua própria concepção religiosa.
Diz São João em “Sobre a Heresia”:
“Então levantou-se entre eles um falso profeta,
chamado Maomé, que havendo encontrado os livros dos Antigo e Novo Testamentos,
e tido contato com um monge ariano, formulou uma heresia nova. Conseguido o
favor de seu povo por uma aparência de piedade, difundiu o rumor que os
escritos lhe vinham do céu e deu a eles como um objeto de veneração.”
São João Damasceno, vivendo sob a lei do islã, conhecia consideravelmente
o islamismo e o Corão. Ao conceber, portanto, a fé islâmica como “a heresia dos
ismaelitas” ele afirma a sua origem como perversão do corpo doutrinário cristão
e retoma a profecia e a tradição bíblica a respeito dos povos oriundos do ramo
abraâmico.
Edward Gibbon (1737-1794), em “Declínio e Queda do Império Romano”, ainda
destaca que a região do Hijaz não estava imune à influência cristã. O reino do
Iêmen, próximo de Meca, estava submetido ao reino cristão de Axum. Abraha (553),
que havia se tornado Rei de Sabá (Iêmen), era vassalo dos soberanos etíopes e,
como tal, professava a fé cristã. Entretanto, se tornou célebre por marchar e
assediar a “cidade santa” com uma tropa de elefantes e com um exército de
africanos. Tinha como intenção destruir a Caaba e obrigar os árabes a
peregrinarem para a Igreja Al-Qullays, que havia construído em
Sana. Esse evento deu origem ao chamado “Ano do Elefante” e diz o historiador
inglês:
Maomé, filho único de Abdala e Amina, nasceu em Meca
quatro anos após a morte de Justiniano e dois meses passados da derrota dos abíssinios,
cuja vitória teria introduzido na Caaba a religião dos cristãos.
O Doutor Angélico (1225-1274) também trata do islamismo em suas obras,
especialmente na “Summa contra
gentiles” e no seu pequeno
tratado “De rationibus fidei contra Saracenos, Graecos et
Armenos ad Cantorem Antiochenum”, ambos escritos em 1264. Santo Tomas responde às objeções apresentadas
pelos descrentes e procura defender o cristianismo diante das falácias dos
infiéis. O Aquinate, entretanto, parece não
partir da idéia, como pensada por São João Damasceno, de que o islamismo fosse
uma heresia. Para ele os muçulmanos são inféis, não-crentes. A partir dos seus
escritos, como indica Mons. Michael Fitzgerald, é possível considerar uma
posição que classificaria o islã como uma religião natural, isto é, o
reconhecimento daqueles atributos óbvios e inerentes à natureza humana, como o a
lei moral, a crença no Ser Supremo, a esperança na imortalidade etc. Sobre esta
base se constrói a superestrutura da Revelação.
O islamismo
se enxerga como a plenitude da Revelação. Destarte, o modo como os muçulmanos
concebem o desvelar-se de Deus e a ação profética no anúncio da Sua mensagem
são similares àquilo que é crido por judeus e cristãos. Assim, o islamismo,
seja uma heresia ou uma falsa religião, entraria no rol das crenças abraâmicas.
Descendentes de Ismael, os árabes formaram uma nação na qual, de certo modo, se
realizou o juramento feito por Deus ao seu servo Abraão.
Entretanto,
muito além dessas discussões teológicas, se encontra o modo concreto de
relacionamento dos cristãos com os muçulmanos. Com o despertar da nova leva de
missões na África a Igreja se viu diante de um desafio peculiar. Nos países do
norte africano, de maioria muçulmana, o apostolado era muito restrito aos
estrangeiros que lá estavam instalados. No máximo, as autoridades européias
permitiam um trabalho de propagação do Evangelho, mas que quase sempre era infrutífero. O trato com o islamismo era mais complexo não apenas por conta da
dureza da shariah, mas também porque, diferentemente das religiões africanas
tradicionais, o islã oferecia uma doutrina mais encorpada e práticas rituais
muito mais refinadas. Desse modo, a realidade missionária se mostrava necessitada
de uma reformulação que fizesse possível o anúncio e o testemunho do Evangelho.
Surgem,
pois, três figuras que modificam profundamente esse processo de relacionamento
entre a Igreja e o islamismo: Charles Lavigerie, Charles de Foucauld e Louis
Massignon. É sabido que Charles de Foucauld e Louis Massignon se conheceram e que
o Irmãozinho de Jesus tinha muita proximidade com os Padres Brancos fundados
pelo Cardeal. Provavelmente todos sentiam que faziam parte de um mesmo processo
de aprofundamento no testemunho da caridade como o grande distintivo do
cristão.
O Cardeal
Lavigerie certamente foi o pioneiro nessa mentalidade. Em seus escritos, Lavigerie se questionava a respeito dos
obstáculos que impediam os muçulmanos na acolhida plena da Revelação Divina em
Cristo e como os seus missionários poderiam atingir os povos árabes usando dos
atributos da sua própria cultura. Como
resposta dessas suas reflexões o Arcebispo de Argel formulou um modus operandi
que se tornou no fundamento das relações dos Padres Brancos com os muçulmanos. O
Cardeal, primeiramente, queria evitar todo o tipo de proselitismo agressivo nas
regiões de maioria islâmica. Ademais, percebera que a melhor forma de
conquistar os corações era através de um radical testemunho de caridade, mediante
a prestação de serviços de natureza social. O exemplo do cristão desinteressado
e apenas amante do próximo era uma experiência nova para o fiel de uma crença
altamente legalista. Lavigerie ainda destacava a importância da inculturação
por meio da adoção de costumes e hábitos locais.
Charles de Foucauld, por sua vez, representa de modo mais destacado a
espiritualidade que norteia esse relacionamento islâmico-cristão. Foucauld,
nascido e criado numa vida de conforto e prazer, chegou a ser afastado do
exército por mau comportamento. Depois de levantada a sua punição,
juntou-se ao seu regimento quando este se destinava para o Norte da África.
Esta estadia na África mudou sua vida. As difíceis condições que experimentou
no deserto purificaram seu coração e mente. A afinidade que sentia com os fiéis
muçulmanos da região também o levou a uma reflexão interior. Como resultado
dessas experiências, ele sentiu uma inquietação religiosa profunda e um
conflito espiritual no seu íntimo. Finalmente, redescobriu sua fé cristã e
decidiu dedicar toda a sua vida a Cristo. Depois de uma série de experiências
diversas na busca pelo sua realização vocacional, Charles de Foucauld, depois
de ordenado em 1901, volta para o norte da África e se estabelece
definitivamente no Saara.
O Irmãozinho de Jesus
descobriu que vivendo segundo o modelo do Jesus de Nazaré em Sua vida
escondida, poderia suprir a necessidade espiritual dos povos berberes do
deserto. Foucauld, na fraternidade espiritual, se propôs a proclamar o
Evangelho com o testemunho de uma vida consagrada. Ainda que não tenha gerado grandes
conversões ou iniciado apostolados fantásticos, o eremita, na solidão da
experiência em Cristo, amara os muçulmanos a partir da experiência da
abnegação. Em seus muitos escritos espirituais Charles de Foucauld descreve o
caráter e o propósito de sua experiência no deserto, vivendo entre uma maioria
não-cristã:
“Minha
evangelização deve ser a evangelização da bondade. Vendo-me, eles devem dizer:
‘uma vez que este homem é tão bom, sua religião deve ser muito boa’. Se eles
perguntam por que eu sou sensível e bom, devo dizer: ‘Porque eu sou o servo de
alguém muito melhor do que eu. Se você soubesse o quão bom é o meu Mestre
Jesus!’ Gostaria de ser bom para que se pudesse dizer: Se assim é o servo como
será o Mestre?’”
Um dos responsáveis
pela perpetuação do legado de Charles de Foucauld foi Louis Massignon. Através
dos seus esforços a regra deixada pelo eremita foi finalmente aprovada pela
Igreja. Este renomado islamista, numa vida dedicada ao estudo do islamismo e da
língua árabe, se converteu depois de uma forte experiência. Entretanto, o seu encontro com Cristo foi
reflexo, curiosamente, daquilo que aprendera no estudo da fé islâmica, dos seus
santos e místicos. Após a sua conversão, Louis Massignon definiu alguns
propósitos em sua vida espiritual. O modo particular como batizara aspectos da
espiritualidade do islã levou Pio XI (1857-1939) a chamá-lo de “católico
muçulmano”. Ademais, o Santo Padre deu a sua aprovação ao propósito de oração
pelos muçulmanos e Pio XII permitiu que já com idade avançada fosse ordenado
sacerdote na Igreja Melquita.
A espiritualidade de
Louis Massignon se centrava em dois aspectos: a hospitalidade sagrada e a badaliya, isto é, a substituição mística. Ambas as noções
foram tiradas do islamismo e devidamente cristianizadas. O primeiro aspecto
impelia Massignon na aceitação da pessoa tal como era, servindo-a sem desejar
que fosse diferente. Já o conceito da substituição ele encontrara pela primeira
vez na biografia de Liduína de Schiedam, santa holandesa que oferecera sua vida
de enfermidade pela salvação dos outros. Massignon queria substituir a sua
vida pela vida dos muçulmanos, "dando a Jesus Cristo, no nome de seus
irmãos, a fé, a adoração e o amor que um conhecimento imperfeito do Evangelho
os impedem de dar”.
Massignon, sendo um dos mais renomados islamólogos de sua época, desenvolvera
um pensamento próprio sobre a temática. Para ele a revelação ocorria em três
etapas; a primeira é a revelação dos patriarcas, na qual a religião natural foi
revelada. Esta é seguida pela revelação da Lei de Moisés. Por fim a plenitude
em Cristo e na revelação do Amor. Para ele, porém, o islamismo é o retorno à
religião natural patriarcal onde a relação com Deus se dá, exclusivamente, na
aceitação das Suas qualidades e no cumprimento de Suas leis, não havendo, pois,
a busca da união com Ele através dessas leis. Para Massignon esse modelo ainda
explicaria as diferenças em aspectos morais entre o islamismo e o
judaísmo/cristianismo. Este “retrocesso” representaria também o retorno aos
padrões morais e sociais da época. O que explicaria a permissão da poligamia e
o alto caráter bélico da fé islâmica.
O modo como Charles Lavigerie, Charles de Foucauld e Louis Massignon
olhavam para o islamismo é idêntico. Os três entendem a fé muçulmana como uma
religião simples, não no sentido de que estava desprovida de complexidade
teológica, mas que significava um retorno a uma concepção de relacionamento com
Deus anterior àquilo que se tornou pleno em Cristo. Entretanto, isso não fazia
com que fitassem o islamismo com desdém. Ao contrário, para Massignon,
inclusive, o islã se mostrava como uma provocação aos cristãos em busca de uma
vida mais humilde.
Tais homens, portanto, estavam impregnados de um carisma próprio, ou seja,
tomados por um modo singular de relacionamento com o islamismo. O fato de
testemunharem Cristo principalmente pela vida de caridade não significava que se
opusessem às conversões. Dois deles, inclusive, são convertidos que descobriram
a fé contemplando o ardor do islã. Por que, então, não se fizeram muçulmanos?
Porque estavam cônscios do mistério redentor e pleno de Jesus Cristo.
Entretanto, receberam de Deus uma missão para que fossem luzes evangélicas
brilhando em terras islâmicas.
2 comentários:
Bismilláh ar-Rahman i ar-Rahim.
Salaam, Pedro! Sem intenção de polêmica, gostaria de te fazer algumas perguntas sobre pontos do artigo que não ficaram claro para mim:
1)O que o conceito de "religião natural" significa? Lembro de uma reunião do GEPC na qual presenciei uma discussão entre Ricardo e sr. Edson sobre a "razão natural" como causa das diversas religiões não-cristãs, mas não sei se se trata da mesma coisa; no caso de teu artigo, entendi que alguns expoentes do catolicismo consideram o Islam e o judaísmo como religiões naturais. Então, Maomé (Muhammad - SAWS) é mentor de uma religião natural assim como Abraão e Moisés (AS)? A minha dúvida se deve ao fato de que o texto me faz pensar, em alguns momentos, que o Islam é apontado como algo até inferior a uma "religião natural", p.ex uma heresia inventada por Muhammad (SAWS)tal como apontado por João Damasceno. Então, resumindo: 1) o que é "religião natural"? 2)O Islam seria, numa perspectiva católica, uma "religião natural" ou algo ainda inferior a isto?
Cordialmente,
Fabrício.
Olá, Fabrício.
Já se vai quase um mês da sua pergunta, então ouso dar meu pitaco.
O tema do artigo, no que depreendi, não foi contextualizar o que significa religião natural. Muito menos dizer se o islamismo é uma "religião natural" ou uma heresia. Menos ainda se arroga a definir qual a perspectiva católica em relação a este assunto. Mesmo porque tal visão definitiva não exite.
O texto simplesmente fala sobre o carisma de três homens que tiveram um importante papel na ampliação do diálogo da Igreja católica com o Islã.
Só.
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