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CONSUMO DO BACALHAU EM PORTUGAL. É inquestionável o prestígio, e a identificação, que o bacalhau tem em relação à imagem da cozinha portuguesa no Mundo. Curiosamente conhecido por ser um produto que …Mais
CONSUMO DO BACALHAU EM PORTUGAL.

É inquestionável o prestígio, e a identificação, que o bacalhau tem em relação à imagem da cozinha portuguesa no Mundo. Curiosamente conhecido por ser um produto que não é nosso, mas que dele nos apropriámos. Quer dizer, ele só é bacalhau depois de ser salgado e seco, e essa técnica de conservação é que é nossa. No século XX quase poderíamos dizer que era o alimento do regime da ditadura!

Consta que já no século XIV Portugal estabeleceu com o reino da Dinamarca uma autorização para pescar. Importante foi o acordo que D. Afonso IV de Portugal e o rei Eduardo III de Inglaterra, 1353, que permitia aos portugueses pescar também em águas dominadas por aquele rei. Supõe-se que os lusitanos já teriam relações comerciais com os países nórdicos, para abastecimento de sal, e talvez, por isso, tenha sido fácil o acesso aos seus mares para pescarmos. Mas porquê tanta necessidade de pescado? Na Idade Média ainda Portugal seria obrigado a um jejum de carnes, imposto pela Igreja, que obrigava a cento e trinta e dois dias por ano. Quem tinha dinheiro comprava bulas e ficava de fora desta regra. Ora, a maioria da população era pobre e a aceitação das imposições da Igreja era comum. Durante o tempo invernoso as pequenas embarcações não tinham condições para o abastecimento quotidiano de pescado. Assim o bacalhau revelou-se uma solução fácil e barata para a época. A salga e seca do peixe eram uma fórmula para a conservação e, portanto, acessível durante todo o ano. Lembro que o jejum não era só quaresmal. Havia também no período que antecede o Natal. Assim se compreende a tradição de comer bacalhau, tradição possivelmente oriunda do Minho onde o bacalhau chegava primeiro. Por este período de jejum natalício, é que o nosso Rei D. Sebastião entrou na história da gastronomia mundial, quando em 1576 oferece a seu tio Rei S. Filipe II de Castela um famoso banquete apenas de peixe constituído que terá merecido da parte de D. Filipe o seguinte comentário: “O certo é que o Rei meu Sobrinho é o Senhor dos mares”.

Durante a ocupação filipina (1580-1640), o comércio de bacalhau sofre uma séria redução pois os esforços concentravam-se na organização da Armada Invencível, sendo que os espanhóis, e depois os ingleses, vendiam o bacalhau a um preço muito elevado. Em 1642, já com a restauração da nossa independência e com D. João IV, é estabelecido novo Tratado de Paz e Comércio com a Inglaterra que permite aos portugueses voltar a pescar no Mar do Norte. No século XIX assistimos a um novo impulso e apoiados pela Inglaterra, a quem que tivemos que comprar seis barcos grandes e bem equipados para este tipo de pesca.

O consumo de bacalhau no século XVI era tão importante que foi aproveitado para ser alvo de um imposto que apenas foi libertado por D. Maria I nos finais do século XVIII. Este facto levou a que a população de Lisboa quisesse agradecer à sua Rainha e que se juntassem no Terreiro de Paço em manifestação de júbilo pelo que a Rainha atravessou a praça a pé, sendo a primeira vez que há relatos da Rainha andar a pé na cidade de Lisboa. No século XX assistimos à venda generalizada e a baixo preço do bacalhau, e a dimensão de embarcações e população portuguesa que pescava, levou o Estado Novo a criar uma embarcação de apoio médico e de assistência higiénico-sanitária. Chegados a 1974, e a nova organização do país levou a que o bacalhau passasse de “Fiel Amigo” a “Amigo Caro”.

O bacalhau teve uma entrada tardia nos manuais culinários. Sabemos que no tempo de D. Afonso III, 1257-1270, surge uma relação de vários peixes secos sem referência ao bacalhau. Apenas para mostrar como era importante já, nesse tempo, a utilização de peixe seco como forma de conservação. Nas primeiras receitas portuguesas, caderno de receitas da Infanta D. Maria, também ainda não consta. Existem na Biblioteca Nacional dois manuscritos sendo que num aparece o bacalhau duas vezes, um molho para servir com o bacalhau, e uma receita de bacalhau na frigideira. No outro aparecem três receitas. É preciso esperar pelo século XIX para o bacalhau passar a ser presença obrigatória nos livros de receitas.

Curiosamente é a partir do século XIX que se instala o consumo de batata em Portugal. Há dois complementos para o bacalhau que parece terem sempre existido: as batatas e o azeite. A sua pesca sempre foi uma atividade de violência e, ninguém como Bernardo Santareno, no seu livro “Nos Mares do Fim do Mundo”, 1959, escreveu sobre os dramas da vida a bordo. Com base nestes escritos o autor transpôs para peça teatral, “O Lugre”, essas vivências.

Fazer um inventário das receitas de bacalhau é tarefa complicada e há vários livros publicados com as centenas de receitas possíveis. A região mais pródiga em receituário de bacalhau é o Minho talvez por o porto de Viana do Castelo ter sido desde o século XIV o porto de privilégio de descarga de bacalhau. E tem lógica. Vindo dos mares do norte, é o primeiro porto em território português. Não irei tratar as várias origens do bacalhau nem os dois principais tipos de cura. A intenção é identificar as variantes culinárias que se instalaram como tradição. Vejamos as receitas que entraram nos hábitos regionais, não constituindo o inventário nacional. Apenas alguns ícones.

Possivelmente um dos pratos mais apresentados e consumidos é o Bacalhau com Todos. É o bacalhau do dia de Consoadas no qual os “todos” são alargados. Para além do bacalhau também se cozem batatas, couves, cebolas, cenouras, nabos, cherovias, e outros legumes da época, e ovo inteiro. Depois tudo bem regado com azeite.

Temos em paralelo, e em todo o país o bacalhau assado na brasa, que depois se polvilha com alho picado e regado com azeite. Habitualmente acompanha com batata cozida ou assada com pele e depois levando um simpático “murro” que lhe dá o nome.

No Entre Douro e Minho não podemos esquecer o nascimento dos famosos “Pastelinhos ou Bolinhos de Bacalhau” que em Lisboa passaram a chamar-se de pastéis e geralmente com mais batata. Nas receitas temos o “Bacalhau à Margarida da Praça”, que é um bacalhau assado que se passa por um mergulho em água fervente e depois colocam-se rodelas de batata cozida, numa travessa funda, em cima o bacalhau que de seguida se cobre com uma cebolada. O “Bacalhau à Moda de Viana”, é mais elaborado. Embrulham-se as postas de bacalhau em folhas de couve lombarda e levam-se ao forno assar, tendo o cuidado e atar, com fio, cada posta. Depois de assadas, retiram-se do forno retirando o fio e as couves, colocam-se numa travessa com rodelas de batatas cozidas e cobre-se tudo com rodelas de cebola que foram alouradas em azeite. De Braga vem-nos outra receita famosa e de prática diária que é o “Bacalhau à Narcisa”. Depois de escalfar as postas de bacalhau, frita-se em bastante azeite até cozer bem. À parte dá-se uma fritadela ligeira a batatas cortadas às rodelas e a cebola também cortada da mesma forma. No azeite de fritar coloca-se louro, colorau, cravos-da-índia e sal. Leva-se ao lume para uma fervura. É tempo de colocar o bacalhau numa travessa e as batatas ao redor. Cobre-se com a cebolada e rega-se com o molho do azeite, e está pronto. Outro bacalhau que identifica esta zona, mas que é originária do Porto, é o “Bacalhau à Zé do Pipo”. Belas postas de bacalhau são cozidas em leite. Depois são colocadas, se possível em canoas individuais, preenche-se o espaço à volta de cada posta com puré de batata. Cobre-se ao bacalhau com uma delicada camada de cebolas alouradas e então cobre-se com maionese, e leva-se ao forno para gratinar. Enfeita-se com azeitonas pretas. Outra receita e quase já é uma receita nacional, para mim é a receita de eleição, trata-se do “Bacalhau à Gomes de Sá”, nascida no Porto.

Para os lados de Trás-os-Montes há o hábito de chamar “à Transmontana” sempre que se adiciona ou recheia com fatias de presunto. No Barroso, há uma receita especial de “Bacalhau Podre”. Depois de uma ligeira cozedura do bacalhau, este corta-se em cubos que, depois de envolvidos num polme de ovo, farinha e água, se fritam e deixam-se escorrer. Entretanto fritam-se batatas às rodelas no mesmo óleo no qual se fritou o bacalhau. À parte prepara-se, num tacho, um refogado de cebola cortada às rodelas com alho picado, louro e pouco da água de cozer o bacalhau. Sobre este refogado colocam-se em camadas alternadas, o bacalhau, as batatas, salsa ripada e polvilha-se com pimenta. Deve agitar-se o tacho sem o mexer. À Hora de ir para a mesa regam-se com ovos inteiros batidos voltando a mexer bem o tacho. Depois é só servir em travessa.

Mais para Sul, encontramos nas Beiras, “Migas Lagareiras à Lafões” e “Migas à Lagareiro”, ambas confecionadas com bacalhau sendo que as primeiras são feitas com pão e couve portuguesa e as segundas com batatas, broa de milho e repolho. Ainda uma “Açorda de Bacalhau com Tomate” e “Couves do Lagar”. No Ribatejo continua a fazer-se uma “Caldeirada de Bacalhau”, e muitas vezes os famosos “Torricados” acompanham com bacalhau lascado.

Aproximando-nos de Lisboa, ainda se faz uma “Canja de Bacalhau” que curiosamente leva batatas e arroz, e depois um ovo escalfado por cada prato. Mas Lisboa viu nascer um receituário especial que se confeciona em todo o país. Sobre os “Pastéis de Bacalhau” não vale a pena referir mais do que o texto especial que se encontra já neste site. Em paralelo temos as “Pataniscas” cuja receita deve anteceder a dos pastéis. E agora já deu origem a pataniscas de outros produtos como o polvo ou os camarões. Mas o verdadeiro emblema de bacalhau de Lisboa é o “Bacalhau à Brás”. Mas também tem descendência no “Bacalhau à Lisbonense” e no “Bacalhau à Assis”. Não se sabendo com rigor o seu início, finais do século XIX?, o termo “à Brás” deu origem a uma nova vaga de preparações culinárias, significando esse termo um acompanhamento. Esta inovação deve-se a Fausto Airoldi e, no outro lado do Atlântico, já Alex Atala o utilizou. Depois de demolhado, tiram- se as espinhas e a pele do bacalhau e desfia-se à mão.